Participei de diversos Congressos da Rede Unida, desde minha época de estudante. Eles me marcaram sempre, e muito, pelas temáticas discutidas, particularmente pelas reflexões sobre a educação e articulações do ensino com o trabalho no sistema de saúde. Essas temáticas, muito escassas no cotidiano da formação, me pareciam fundamentais para mirar um desfecho para a formação profissional que não conseguia enxergar na sala de aula ou mesmo nos diferentes ambientes do hospital universitário que usualmente frequentava para o fluxo curricular.
Os debates travados nas diferentes atividades dos Congressos contribuíam para uma formação geral, como cidadão, mas também constituíam protagonismo, na medida em que me permitiam constituir filtros para a subjetivação oferecida no cotidiano e, sobretudo, identificar lacunas que deveria complementar por fora do currículo regular. Saber onde deveria chegar segundo as políticas de formação e de saúde funcionava como uma bússola para o percurso acadêmico e para a experimentação que ia fazendo durante a trajetória da graduação. Contudo, os Congressos também constituíam dispositivos de pensamento que me tornavam capaz de falar sobre formação não apenas a partir do percurso constituído por dentro da escola médica, identificando limites que somente o ponto de vista de quem vivia aquele processo formal era incapaz de perceber. Aqui não se trata apenas da tensão entre a política institucional da universidade e as políticas dos sistemas de educação e saúde do Brasil. Trata-se de aprender a pensar e perceber as potências micropolíticas, como disse Chaves1, nas brechas da regulação institucional e, mesmo, das políticas, para produzir percursos singulares ao experimentar/sentir/viver a delicadeza do aprender saúde.
Os Congressos da Rede também me marcavam pelos encontros: com especialistas e referências teóricas que lia em artigos e livros; com colegas estudantes de diversos cursos, instituições e âmbitos de formação, que compartilhavam experiências, afetos, agendas; com trabalhadores de saúde de diversas localidades e naturezas de serviços, que falavam de cotidianos distintos e complexos, bem diferentes do que a “formação oficial” me oferecia; como o “objeto” educação e trabalho em saúde, visto sob prismas diversos, que me permitiam pensar sobre meu percurso, da profissão que escolhi, das suas interfaces com as demais, com o mundo do trabalho; com experiências diversas de formação; com muita empolgação e esperança em mudanças na formação e no sistema de saúde; com ideias libertárias e pensamentos novos. Os Congressos da Rede Unida constituíam em mim uma rede de encontros e eu retornava mobilizado, com aprendizagens muito relevantes, esperançoso, vitalizado e com o pensamento ativado. Algum tempo depois do efeito em mim dos primeiros Congressos, da potência do aprender que foi se constituindo e dos percursos que me estimularam a trilhar de forma intensa pela formação e pelo trabalho, das redes de pensamento e parcerias que esses percursos me propiciaram, tornou-se significativo o conceito da educação permanente em saúde, como educação/trabalho, ficou visível a potência de travessia de fronteiras2 que ela tem e, com base nisso, me produzir reflexões mais densas sobre essa temática3.
A partir de 2009, primeiro Congresso de que participei da organização, incorporei novas linhas de aprendizagem. Aprendi que um Congresso pode tornar-se uma espécie de monumento, que oferece possibilidade de contemplação e acúmulo de informações, próximo do que nos ensinou Paulo Freire com a expressão “educação bancária”4. Ou pode tornar-se uma experimentação de diversidades, um espaço de trocas e produção de conhecimento significativo2, uma rede de encontros. O que abre possibilidades de ser uma ou outra dessas modalidades é o modo como é planejado e realizado, além de como os participantes se agenciam na proposta do evento. Planejar um Congresso não é como planejar uma aula ou, mesmo, uma disciplina. Um Congresso exige um planejamento muito mais longo e muito mais complexo. Mas o que se espera do participante tem uma imagem similar: como na aprendizagem, pode-se planejar congressos para expectadores/consumidores de informação ou para participantes ativos, com experiências para compartilhar e com oportunidade de se transformar no encontro com as ofertas e demais participantes. Naquele ano, diante de uma crise relevante no cenário das políticas de educação e trabalho em saúde e do próprio SUS como política para a saúde, constituímos a temática da “Reforma Sanitária e SUS: desafios para o século XXI”, com parcerias quentes com a Universidade Federal da Bahia, a Secretaria de Saúde do Estado da Bahia, a Escola de Saúde Pública e diversas outras entidades. A diversidade de olhares, a resistência, os diferentes saberes do cotidiano dos serviços, o compromisso com o SUS e uma articulação forte entre atenção/gestão/participação/formação tornou viável o Congresso, um ano após a data programada na agenda de Congressos da Rede. Saímos daquele Congresso com a sensação de uma rede unida e forte!
No ano seguinte, o Congresso retornou ao calendário regular, e o Congresso foi realizado em Porto Alegre, na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. A proximidade física e política com países do Mercosul, produzida pela localização geográfica, mas, principalmente, por diferentes vetores de cooperação, fez um Congresso Internacional. O frio de dias de um inverno rigoroso foi estímulo e deu conforto ao calor dos debates, das rodas, das távolas, das mostras, da troca acadêmico-cultural-afetiva. O Congresso mobilizou instituições, atores, resistências, reexistências. Não se curvou ao contexto político e ratificou a sensação da instituição como rede quente, como resistência e como potência de produção de iniciativas e políticas para saúdes mais generosas e para formações mais comprometidas com as saúdes das gentes. Fui incumbido da Coordenação Nacional da Associação Brasileira da Rede Unida nesse Congresso.
Seguiu-se nova edição internacional na cidade do Rio de Janeiro, com diversas instituições de ensino, as Secretarias Municipal e Estadual de Saúde, a Fundação Osvaldo Cruz, o governo federal, movimentos sociais e uma diversidade de eventos associados. A 10ª edição do Congresso Internacional da Rede Unida, em 2012, foi antecedida de encontros regionais, o que fez aumentar muito o número de trabalhos e de participantes. Também o número de participantes de outros países e o número de países representados. As praias e pontos turísticos da Cidade Maravilhosa não foram capazes de esvaziar o Congresso; o Congresso tornou-se ponto de encontro no período de sua realização.
Em 2014, foi a vez de Fortaleza, e em 2016, Campo Grande. Sempre Congressos enormes, com uma quantidade e uma diversidade de trabalhos muito expressiva, multiinstitucional multiétnico, multicultural. A diversidade com espaço de expressão, muitas vezes tenso, mas sem maiores adversidades quando a tensão se dava em um intervalo de ética e respeito, sobretudo de defesa de direitos das pessoas e das coletividades e das políticas públicas promotoras de inclusão e cidadania. É assim: planejar e executar os Congressos da Rede é uma tarefa bem complexa, somente realizável com a mobilização de corações e mentes de centenas de militantes do SUS, da formação ética e técnica e da democracia vigorosa.
No 12º Congresso Internacional da Rede Unida, na Campo Grande, cidade morena, dos ipês e de Manoel de Barros, poeta dos desassossegos e do sorriso largo, assumiu a Coordenação Nacional da Rede Unida, o gaúcho-manauara Júlio César Schweickardt, completando um ciclo de minha relação com o Congresso. Não retorno, entretanto, ao mesmo lugar: os Congressos e a Rede Unida agora são parte das minhas aprendizagens, dos meus afetos, das minhas afecções.
Por isso, me ocorre dizer: bem-vindo 13º Congresso Internacional da Rede Unida! Vida longa e produtiva à Rede Unida e à potência que o encontro educação e trabalho tem para o desenvolvimento do SUS e para a defesa da vida dos brasileiros e das brasileiras. Certamente Manaus nos receberá para uma toada, com o coração aberto e com um convite para entrarmos na rede de encontros!
Alcindo Antônio Ferla
(Médico, doutor em Educação, professor e pesquisador no Bacharelado e no Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva da UFRGS, ex-Coordenador Nacional da Rede Unida.)
Referências
1. CHAVES, Simone Edi. Os movimentos macropolíticos e micropolíticos: sem ensino de graduação em
Enfermagem. Interface (Botucatu) [online]. 2014, vol.18, n.49, pp.325-336. Disponível na internet: http://www.
scielo.br/pdf/icse/v18n49/1807-5762-icse-18-49-0325.pdf. Consulta em 09/11/2016.
2. CECCIM, Ricardo Burg; FERLA, Alcindo Antônio. Educação e saúde: ensino e cidadania como travessia de
fronteiras. Trab. educ. saúde, 2008, vol.6, no.3, p.443-456. ISSN 1981-7746. Disponível em http://www.scielo.br/
scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1981-77462008000300003&lng=pt&nrm=iso. Acesso em 09/11/2016.
3. FERLA, Alcindo Antônio. Clínica em movimento: cartografias do cuidado em saúde. Caxias do Sul: EDUCS, 2007.
4. FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. São Paulo: Paz e Terra, 1996.