O CHILE EM DEBATE

10/29/2019 8:41 a.m.
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Um pequeno aumento no preço das passagens do metrô de Santiago, foi como ascender um pavio em um paiol de pólvora. A população chilena explodiu em manifestações contra o governo e suas políticas neoliberais. O propagado “oásis” que era o Chile se transformou na demonstração do mais retumbante fracasso das políticas neoliberais. Para falar sobre as mobilizações recentes naquele país, o Coordenador Nacional da Rede Unida Túlio Franco entrevistou Jamadier Uribe. Psicólogo, estudante de doutorado em Valparaíso, e trabalhando na Comissão de Direitos Humanos do Senado Federal como analista político, Jamadier fala das mobilizações no Chile, da luta do seu povo Mapuche que trava uma heróica e longa resistência ao estado colonial Chileno, e as perspectivas atuais para o movimento que se iniciou neste outubro de 2019.

Entrevista com Jamadier Uribe[1]

TF: Jamadier, gostaria que falasse um pouco de você: quem é Jamadier Uribe?

JU: Sou psicólogo e cientista político, atualmente estou fazendo doutorado em Psicologia e Transformações Sociais na Pontifícia Universidade Católica de Valparaíso, além de trabalhar como analista político no Senado da República, com o Senador Alejandro Navarro que preside a Comissão de Direitos Humanos.

Não sou propriamente chileno, sou de Chiloé, que é uma pequeña colônia ao sul do Chile, daí que grande parte do meu trabalho académico está vinculado à análise dos procesos de colonização e descolonização na América Latina, que se entrelaçam com o desenvolvimento do capitalismo, que é precisamente o que está em conflito hoje no Chile.

TF: Qual a causa das recentes mobilizações de outubro de 2019 no Chile?

JU: As causas são várias, e creio que temos que distingui-las, porque não têm o mesmo peso específico no desenvolvimento das contradições atuais. A causa imediata foi o aumento das tarifas do metrô em Santiago, e a resposta dos estudantes secundaristas com uma evasão massiva. A resposta do governo de Piñera foi a repressão, o que gerou uma escalada do conflito. O que era um problema de transporte público, em duas horas se converteu em um conflito social e em  seis horas em um estado de exceção constitucional, o qual temos a convicção de que é ilegal.

Agora, esse aumento, se dá no contexto de uma serie de aumentos no custo de vida, que vão provocando uma sensação não só de indignação, mas, sobretudo de desesperança. Aumentos no preço da luz, dos combustíveis, da moradia. O que se soma a uma evidente crise no sistema de saúde, que no primeiro semestre de 2018 nos deixou um triste saldo de 9.740 pessoas mortes na lista de espera para serem atendidas por um médico; isso no Chile é um número alto, porque é um país pequeno de menos de 20 milhões de pessoas.

Uma situação parecida é a dos Fundos de Pensões (AFP – sigla em espanhol), que tem levado a que adultos idosos se suicidem, porque não recebem o suficiente para viver, nem sequer sobreviver. Se indico os problemas um por um, não vou terminar nunca, porque no Chile tudo se converteu em um negócio e entender como e por quê, nos leva à compreensão do assunto.

Chile foi o primeiro experimento neoliberal da história. O que fez o neoliberalismo, foi mudar o padrão de acumulação de capital no Chile em vários sentidos, porém acredito que há um que é fundamental para compreender a situação de hoje; é o que David Harvey chamou a “acumulação por espoliação”. A “acumulação por espoliação” consiste, basicamente, em criar nichos de acumulação de capital, nos lugares onde antes haviam direitos sociais e sentido público.

A partir de Pinochet, o Chile entrou em um ciclo interminável de retirada de direitos sociais para convertê-los em nichos de acumulação, que longe de parar com o fim da ditadura, se aprofundou. No Chile tudo se compra, até os direitos mais básicos como saúde e educação, e quando é público, se encontra em absoluto abandono, como os hospitais e as escolas públicas.

Visto assim e visto agora, é evidente que o país caminhava direto para uma explosão social, porque em um país onde tudo se compra e ninguém tem dinheiro para comprar, as pessoas não podem satisfazer sequer suas necessidades básicas. Mas, como ninguém fez nada antes?

Muitos têm utilizado a metáfora da panela de pressão, para referir-se ao desenvolvimento das contradições no Chile, e que mais tarde ou mais cedo iria explodir. Pois bem, a tampa desta panela, era a institucionalidade política que se construiu nos anos 1990, onde debaixo do conceito de “técnico”, se destruiu o significado da política, com a política institucional, criando uma espécie de casta cujo único nexo orgânico com a sociedade civil, era o empresariado.

Houve alguns políticos comprometidos, sem dúvida, porém a desvinculação orgânica da política com o mundo social, fez que se acumulasse um mal estar por 30 anos, o qual a institucionalidade não pôde processar, e agora simplesmente transborda.

TF: Como tem sido a participação dos estudantes neste movimento?

JU: Os estudantes irromperam no cenário político pós-ditadura em 2006, com o que se conheceu como a rebelião dos pinguins, e desde então tem sido um agente mobilizador de tremendo senso comum. Em 2011 voltaram ao protagonismo, e foram os que conseguiram impugnar, no sentido comum, a legitimidade com a qual se contava para fazer negócios com os direitos sociais.

Esta mobilização também começou com eles. Foram eles os que fizeram o chamado às evasões massivas do metrô, das quais derivou a mobilização de todo o país. Estudantes em geral de estratos médicos e baixos, que diante do estado de miséria em que se encontram suas famílias, decidiram rebelar-se.

É curioso, porque o aumento das passagens não afetava a passagem escolar. O que os estudantes fizeram foi levantar a voz por todo o povo empobrecido, e o povo nesta oportunidade entendeu a mensagem. Como dizia Mao Tse Tung, uma só faísca pode ascender os campos, e vai que a incendiou.

TF: Foi publicada uma foto de uma bandeira Mapuche ao alto de um monumento repleto de pessoas, tendo ao fundo uma imagem da cidade de Santiago. Essa foto por expressiva que é teve uma grande repercussão. A causa dos Mapuche está em discussão junto com as outras reivindicações do movimento?

JU: A verdade é que não se pode falar de um movimento social, no sentido em que usualmente se utiliza o conceito para falar, por exemplo, do movimento feminista, dos sem teto, etc... Aqui não há uma demanda clara, nem muito menos uma organização definida, ou líderes.

Por isto mesmo não há um documento de reivindicações, o que há é uma afirmação radical de que esta realidade dói, não gostam e deve ser transformada profundamente. Nesse sentido, não poderia afirmar que é algo que todo o mundo esteja discutindo, porem sim, que pelo menos uma parte da população o tem muito presente. O povo Mapuche reconhece o valor de nunca haver rendido em sua luta pela livre determinação, e cada vez mais gente se identifica com a etnia, o que não quer dizer – necessariamente – que participe da cultura Mapuche.

Sob esta premissa, pode dizer que temas com a autonomia territorial não ganhou muita relevância neste momento no Chile, o que não significa que as pessoas não estejam dispostas a falar sobre isto, ou contra a ideia, só não se faz ou se faz pouco. Diferente é nos territórios colonizados, como o Wallmapu (País Mapuche) o Chiloé.

TF: Como tem sido a participação dos Mapuche nas mobilizações recentes?

JU: Depende do ponto de vista do qual se olha. A Coordenação Arauco Malleco, que é uma das organizações mais importantes da resistência Mapuche, desde o começo apoiou as mobilizações do povo chileno, ao mesmo tempo fez um chamado para intensificar a luta do povo Mapuche pela recuperação da terra.

Nesse sentido, há uma solidariedade entre povos e os Mapuche têm participado, também em apoio à mobilização geral. Não obstante, como te adiantava, a reivindicação do povo chileno é, naturalmente, diferentes das reivindicações que se levantam nas colônias, porque nestas últimas, se exige autonomia territorial, que é algo que os chilenos não estão pensando, porque não é parte das suas necessidades.

Os Mapuche, em particular, e os povos indígenas em geral, têm assumido a luta contra o atual Estado do Chile e têm apoiado uma reforma profunda das suas instituições, porém eu não diria que as reivindicações dos povos originários têm incorporado as diversas reivindicações dos cidadãos em geral. Ainda assim, não se pode descartar que começa a criar um diálogo. O conflito do Chile com suas colônias, é na realidade, um conflito das burguesias chilenas e transnacionais com as colônias, não é uma disputa entre povos.

TF: Fala um pouco da sua experiência pessoal neste movimento. Você participa dos trabalhos da Comissão de Direitos Humanos do Senado Federal? Fale sobre isto.

JU: Sou convicto de que os intelectuais, não só temos o dever, se não a necessidade, de estar na academia, nas instituições e na rua. Para mim, nenhuma instância está acima da outra.

Na rua sou um cidadão a mais, vou às passeatas toda vez que posso, e neste momento estou disfônico, depois de que agitamos Viña Del Mar no sábado à noite.

Nas instituições sou assessor do Presidente da Comissão de Direitos Humanos, aqui temos tido a oportunidade de constatar as gravíssimas violações dos direitos humanos, que se têm perpetrado por parte das força pública, e além disto temos chegado à convicção de que o Presidente Piñera é o principal responsável por esta situação. A tese jurídica é que não se seguiram os procedimentos que a Constituição estabelece, para decretar estado de exceção constitucional.

Nas jornadas tivemos pelo menos 18 mortos, mais de 3 mil presos e mais de mil feridos. Sabemos que, pelo menos, cinco dos mortos foram nas mãos de agentes do Estado e essa cifra pode aumentar. Hoje mesmo, recebemos denuncias de ameaças e de torturas; é uma situação dantesca. O compromisso do Presidente da Comissão é que não haverá impunidade, e apoiar esta luta, é o meu trabalho.

TF: Quais são os próximos passos do movimento?

JU: Como te assinalava anteriormente, é difícil falar do movimento propriamente dito, isto ainda tem mais a fisionomia de uma explosão, do que de um movimento. No entanto, parece que já se começa a formar pontos de acordo tácitos bastante claros.

Nas marchas, corre com força a necessidade de uma nova constituição. Isso nos fala de uma consciência política sem precedentes na pós-ditadura, se tem compreendido que as mudanças devem ser de fundo. E, junto com ele, se tem colocado a renúncia do Presidente Piñera, mesmo porque, seria imoral qualquer negociação com um Presidente que tem as mãos manchadas de sangue.

Os deputados do Partido Comunista e da Frente Ampla já apresentaram uma denúncia constitucional para destituir o Presidente, e a nova constituição é uma ideia cada vez mais aceita. Pelo menos como eu entendo, essas são as reivindicações mais fortes, se têm sucesso ou não, dependerá da força que pode continuar mobilizando as pessoas, para pressionar um parlamento que segue em sua maioria, conservadora e elitista.

 


[1] Traduzida do original em espanhol por Túlio Batista Franco.